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PASSEI MINHA INFÂNCIA EM BOM DESPACHO. ERA FELIZ E NÃO SABIA

(Uma homenagem aos 113 de nossa cidade)

A minha rua era a do Céu. Exatamente isso: Rua do Céu. Hoje a chamam de Rua Flávio Cançado. Ela começava na Praça da Matriz e eu nunca soube onde terminava. Pelo nome, sempre acreditei que ela subia até alcançar o Céu. Era uma rua larga, sem calçamento. Asfalto era uma coisa que não existia naquela época, pelo menos não por aquelas bandas. Na seca, era só poeira; nas chuvas, era um barreiro só. Passei minha infância ali. Éramos oito irmãos. A família era pobre. Naquela época tudo era pobre, porque o País era pobre. Havia um ou outro rico, geralmente algum fazendeiro. Carros na rua apenas uns três ou quatro, além do Buicão do Sô Preto – único táxi da cidade.

Escola só havia uma: o Coronel Praxedes que acolhia todos os meninos dos 7 aos 11 anos. Não havia maternal, nem jardim da infância, nem pré-escola. Havia aqueles que tomavam “bomba” e tinham de repetir o ano. Estes ficavam até os 12 ou 13 anos no curso primário. Eram mais fortes e temidos nas brigas na hora do recreio. Franzino que era, eu morria de medo só de ver o Félix, o Fábio ou o Alemão – os mais briguentos.

Íamos a pé pro Praxedes, geralmente descalços. Sapato era só pra ir à missa das 8 aos domingos. Quando chovia, a gente ia com uma capa preta de pelerine, sem capuz. Tomávamos chuva na cabeça, mas a gente não estava nem aí. E não me lembro de alguém ter pegado gripe por isso.

Chegávamos da escola ali pelo meio-dia. Almoçávamos e pernas pra rua, brincar, jogar futebol no “campinho dos Padres”, ali perto, nadar no “Tira-prosinha“ e, pior, no “Tiraprosão” – que era bem mais fundo que nosso tamanho. A gente não sabia nadar mas tínhamos que pular no Tiraprosão pra provar que éramos “homens”. Eu morria de medo mas pulava assim mesmo. Voltávamos pra casa ao entardecer. Lavávamos os pés imundos numa bacia de água quente para evitar o “cascão”, comíamos alguma coisa, fazíamos o dever de casa e cama. No dia seguinte, a rotina se repetia.

Bom mesmo era quando chegava um circo ou um parque na cidade – sempre armados ali na Praça São José, hoje a Praça Antônio Leite. Não tendo dinheiro pra comprar o ingresso, o jeito era passar por debaixo do pano. Às vezes o vigia nos pegava e nos punha pra fora. Mas, tentávamos outras vezes, tantas quantas necessárias. Era uma farra.

Aos domingos à tarde, tinha a matinê do Cine Regina: Flash Gordon, Capitão América, Capitão Marvel, Tarzam, Randolf Scott e Alan Ladd eram os nossos heróis. Mas, sem dinheiro suficiente para pagar o ingresso, a gente dependia da boa vontade do Dr. Juca – dono do cinema – que sempre chegava exatamente na hora da sessão começar. Ia recolhendo o que tínhamos de moeda e deixando-nos entrar. Abençoado Dr. Juca!

É claro que, vez por outra, a gente fazia alguma estripelia – roubava jabuticaba na casa da D. Judith, brigava na rua, demorava mais tempo na rua – e quando chegava em casa, o couro era certo. Meus psicólogos da época eram o chinelo da minha mãe, o cinto de meu pai ou o cabo de vassoura. Apanhei bastante, mas nem por isso guardei qualquer rancor de meus pais, nem fiquei traumatizado. A gente chegava em casa ressabiado, com medo de apanhar, e minha mãe dizia: “-Pode vir, filho, seu pai não vai te bater, não!” Como me disse outro dia um meu irmão, esta foi primeira “fake news” que ouvi. Não havia Vara da Criança e do Adolescente. A única Vara que conheci quando criança era uma vara de marmelo que a mamãe usava para não estragar seu chinelo quando batia na gente.

Me lembro quando surgiu a primeira TV em Bom Despacho. Foi um vizinho nosso – o Berlim – que comprou. Pequena, em preto e branco, e com uma imagem que nunca parava fixa. Nosso programa noturno favorito era ficarmos apinhados na janela do Berlim para assistir a TV. Éramos tantos que às vezes dava briga.

Nossas diversões mais comuns eram jogar “finca”, bola de gude, cambuí e pião. Tudo muito barato e divertido. E os troleis que a gente fazia com uma tábua e umas rodinhas de rolimã? Descíamos a Rua do Céu em desabalada carreira, um sentado e outro em pé no trolei que, claro, não tinha freio. Todos gritavam: “-Se cair do chão não passa!” E o trolei só parava quando batia em algum muro ou meio-fio. Nossos cotovelos viviam machucados. Vez ou outra alguém quebrava o braço ou destroncava o pé. Mas isso também fazia parte.

E havia ainda as vacinas que eu detestava: contra sarampo, varicela, tétano, coqueluche e, depois, ainda apareceu uma outra, contra paralisia infantil. E o medo de pegar caxumba que, segundo diziam, descia para o saco e você ficava impotente. Isso, sim, era traumatizante. Pior que tudo isso era tomar os famosos lombrigueiros – para pôr as lombrigas pra fora. Não gosto nem de lembrar!

Dentista só havia um: o Dr. Raul. Diziam que era dentista prático. Ele arrancava dente da gente ou tratava canal com ou sem anestesia. A opção de meu pai era sem anestesia por ser mais barato. Sou traumatizado com dentista até hoje. O Dr. Wilson sabe disso perfeitamente.

Pensando bem, não sei como sobrevivi a tudo isso: caíamos das árvores, pulávamos no Tiraprosão sem saber nadar, andávamos de trolei sem freio, bebíamos água do Tiraprosinha que era mais suja que a do Tiraprosão, brincávamos na chuva, andávamos no pasto no meio de vacas brabas, e apanhávamos de verdade.

Hoje, já um tanto velho, e depois de conhecer o mundo quase todo, me bate uma saudade tremenda de tudo isso. Eu era feliz e não sabia. O que me faz lembrar daquela canção do Ataulfo Alves:

“Eu daria tudo que tivesse pra voltar aos dias de criança.

Eu não sei por que a gente cresce se não sai da gente esta lembrança

Da cidadezinha onde nasci. Ai, meu Deus, eu era tão feliz

Na minha pequenina Bom Despacho.

Que saudade da professorinha que me ensinou o beabá.

Onde andará Isabelinha, meu primeiro amor, onde andará?”…

E olho para meus netos e fico com pena deles. Têm de tudo o que o mundo moderno pode lhes oferecer. Mas nunca saberão como era bom ser criança em Bom Despacho há alguns anos atr

ás.

* * *

Mozart Foschete

Poleiro do Chantecler – O ferrinho do dentista.

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