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Tal Pai, Tal Filho: RONALDO, FILHO DE ANTÔNIO

Ronaldo Gontijo de Oliveira nasceu aos 4 de abril de 1945. Sua mãe, Josefina Gontijo Leite, tinha 19 anos; e seu pai, Antônio Leite de Oliveira, 27. Nasceu na fazendo do Córrego d’Areia, onde hoje é o Bairro da Babilônia, em Bom Despacho.

Aos sete anos mudou-se com os pais e os três irmãos que tinha à época, para uma casinha na rua do Calabouço, logo abaixo do pontilhão sobre o trilho da linha do trem de ferro. Estudava no Grupo Escolar Coronel Praxedes. Subia a pé o morro que desembocava na Praça do Larguinho e seguia até alcançar o Grupo. Para suas pequeninas pernas, era um percurso longo e desafiador. Saía de casa bem cedo, pra conseguir cumprir tamanha façanha a tempo. Vinha parando para retomar o fôlego e apreciar o caminho. Adorava parar nos barrancos, pra fuçar as pedrinhas. Quando o tempo dava, descia no corte da estrada de ferro e se perdia em meditações, buscando explicações para aquelas camadas de terra, que compunham na parede um listrado inexplicável. Mais tarde, bem mais tarde, voltaria àquele corte munido de seu martelo e diploma de geólogo. Tudo ficou então claro pra ele, naquele livro aberto que eram os afloramentos rochosos. Lia-os tão bem como lia a cartilha “Lalau, Lili e o Lobo” nas aulas da Dona Lourdes do Zé d’Avó no primeiro ano do Grupo Escolar Coronel Praxedes. Havia se formado em Engenharia e especializado em Geologia, Geotecnia e Mecânica dos Solos.

Mas voltemos.

Durante o período do Grupo Escolar, inaugurou-se em Bom Despacho o Pré-Seminário, num prédio nobre e imponente, atrás da Igreja Matriz, que hoje fica escondido atrás das lojas. Apenas uma portinhola franqueia hoje o acesso ao vetusto prédio. Davam aulas professores eruditos, egressos do Seminário de Manhumirim, Sacramentinos de Nossa Senhora. De família muito religiosa, com vários padres e freiras, lá se vai o Ronaldo estudar pra Padre, quem sabe pra Bispo, quem sabe pra Cardeal, quem sabe pra Papa. Mentira. A mãe não contava com tanto. Queria apenas que o filho tivesse educação erudita, rigorosa e enciclopédica. Era um semi-internato. As crianças passavam a semana no Seminário e os fins de semana em casa. Da rotina, constava assistir diariamente a Missa das Seis. Dez pras seis, as crianças desciam em fila a escadaria do Pré-Seminário, atravessavam a rua, passavam em frente ao busto do Padre Augusto, entravam na Igreja pela sacristia e se assentavam contritos nos bancos da frente, tudo sob a vigilância severa do Frater Seminarista Olavo Cabral. Todos de mãos postas, cabeça baixa, se alojavam em silêncio e contrição.

Abre parêntese:

Quando Ronaldo nasceu, Dona Veva, avó paterna, ofereceu para enviar ao Córrego d’Areia a ajuda da velha Teresa, que havia sido babá de Antônio Leite de Oliveira. “-Josefina, ela está velha, não consegue fazer muita coisa. Mas dá conta de balançar a rede.” Josefina, tão nova, penúltima de 10 filhos, órfã de mãe aos 4 anos, tendo que se resolver sozinha com a inexperiência da maternidade, sem Google, sem ChatGPT, aceitou correndo a oferta. Numa quinta-feira, desponta no morro a charrete com o pai de Ronaldo e a velha Teresa de mala e cuia, ou uma muda de roupa e o cigarro e palha. Ronaldo recém-nascido nos braços da mãe e Teresa de Jesus, filha de escravos alforriados, de braços com o pai, se encontraram perto do mourão do curral da fazenda Córrego d’Areia. O olhar do bebê e o olhar da velha se encontraram. E uma faísca divina resplandeceu. Amor, o mais puro e divino amor. Nadinho e Teresa nunca mais se separaram. Tal qual no poema de Manuel Bandeira,

“Da primeira vez que vi Teresa, não vi mais nadaOs céus se misturaram com a terraE o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas.”

Fecha parêntese.

E dez pras seis o menino descia a escadaria do Pré-Seminário; e dez pras seis Teresa pegava seu tamboretinho de couro de bezerro e subia pela Faustino Teixeira, onde agora morava a família, em direção à Igreja. O tamboretinho particular era reminiscência da escravidão, quando senhor e escravo não se misturavam, lembra? Em Ouro Preto não tem a Igreja dos Pretos? E em Mariana, em Tiradentes, em Salvador… Teresa, que mal sabia rezar o Pai Nosso, encostava seu banquinho na parede lá no fundo da Igreja, perto da porta principal, pois não ousava sentar-se em qualquer banco no meio do átrio. A discrição não era só para disfarçar sua auto-imagem histórica nem a ignorância do Pentateuco – era pra disfarçar sua intenção: ela ia à missa das seis para ver o Nadinho. Seus olhos se enchiam de amor quando ele entrava. E os olhos dele, idem. Ela fitava em direção ao altar. Mas Nadinho tinha que fitar em direção contrária. E virava o pescoço a toda hora, buscando o olhar de Teresa, com o Frater Olavo a repreendê-lo por tanta movimentação. E os olhares se encontravam e o amor os renovava para mais um dia de seminário e um dia de lidas. Nessa época, Ronaldo já tinha quatro irmãos e Teresa ajudava com todos. Mas o amor maior estava lá, no vetusto prédio, aguardando as seis horas da tarde.

Adolescente, passou para o Colégio Estadual Miguel Gontijo. Nas férias, ia com seu pai para os garimpos nas terras do Seu Odilo, onde hoje é o Bairro dos Cristais. Naqueles 1959, era terra distante, mal tinha um trilho onde coubesse o velho Jeep, carregado com os Maritacas – ajudantes fiéis do Velho Garimpeiro, os apetrechos do ofício e o pequeno Ronaldo espremido entre os brutamontes. O pai queria lhe ensinar a trabalhar e ao mesmo tempo fazê-lo entender que o futuro estava nos livros e não no esforço físico do bater da barramina de 10 metros, que tinham que enfiar à força de muque terra adentro, para prospectar os veios de cristais. O pequeno e magro menino tinha que entender que o corpo padece, se a cabeça não acumula informações muito valiosas. Mas feitiço virou contra feiticeiro. O miudinho ia tomando gosto pelo ofício, a cada temporada de férias, a cada feriado, a cada dia santo. Adorava o contato com a terra, o faiscar dos cristais vindo à luz, a história da Terra escrita naqueles poços listrados como o barranco do corte do trilho do trem de ferro. E só queria ir pro garimpo. E só queria estar na companhia do Velho Garimpeiro e dos Lobos do Cerrado. Até que o menino chegou à inevitável conclusão sobre sua vocação: “-Mamãe, quero largar a escola e ficar só no garimpo.” A mãe tremeu. Não queria para o filho aquela vida de suor, sacrifício e incertezas. Mas nada demovia o menino. A mãe recorreu ao Padre Vicente Rodrigues de Araújo, muito amigo da família e do Ronaldo, que fora seu coroinha lá no Pré-Seminário. “-Padre, estou com vontade de deixá-lo sair da escola e ir pro garimpo. Ele vai experimentar tanta dureza, que vai escolher voltar pra escola.” Padre Vicente, sapientíssimo Doutor em Teologia pela Universidade de Roma, pediu um tempo para pensar. Voltou uma semana depois com a conclusão: “-Josefina, Ronaldo puxou Antônio. Não se intimida com trabalho de qualquer espécie. E se depois de uma temporada de garimpo você apresentar a ele as opções – estudar ou garimpar – e ele escolher garimpar? O que você vai fazer? Você vai é dizer a ele agora que ele pode ir garimpar depois de te apresentar o diploma do Ginásio. Porque aí, mesmo que ele pare de estudar por um tempo, no futuro ele voltará num estágio avançado e não numa turma de adolescentes.”

Assim a mãe fez, assim o menino fez: finalmente entregou o diploma à mãe e se mandou pro garimpo. Garimpou quartzo, garimpou diamante, garimpou sonhos e esperanças. Até descobrir que não era suficiente. Voltou à escola, fez Curso Técnico de Estradas, Faculdade de Engenharia e… isso já contei.

E Teresa?

Teresa envelheceu mais ainda. As pernas incharam, os pulmões reclamaram do fumo de corda, o fígado ressentiu-se da cachacinha que gostava de tomar no bar do Vandick, do outro lado da rua, colado ao Cine Odeon, onde enchia os bolsos da saia larga e comprida de bala puxa-puxa pra trazer para a criançada. Dona Veva pediu então que Josefina levasse Teresa de volta, pra ela cuidar do fim dos dias de Teresa. Josefina respondeu que não, que ela própria ia cuidar de Teresa, que a ajudara tanto com os cinco filhos. Só não cuidou da última, que ainda estava no ventre. E em uma manhã fria do mês de agosto de 1961, Teresa partiu para a eternidade. Foi a primeira orfandade que aquela família experimentou.

Em outubro nasceu a sexta filha do casal, quinta irmã de Ronaldo.Feito um mês de vida a bebê, preparou-se o batizado. Ia chamar-se Denise. “-Ronaldo, sobe pra Igreja na frente, pra dar os dados e o nome da menina: Denise”. Ronaldo subiu num galope em direção à Igreja. Quando chega a família com a bebê, os padrinhos, o clero e o Padre João Halfeld: “-Eu te batizo, MARIA TERESA, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.” MARIA TERESA?? A mãe levou um susto, arregalou os olhos em direção ao Ronaldo, que sorria um sorriso de beatitude e peraltice, de certeza do amor registrado, selado e agora sacramentado, o mesmo amor que um bebê descobriu aos dois meses de vida perto do mourão do curral do Córrego d”Areia. Aos 80 anos, se falasse na Teresa, a velha babá, os olhos dele marejavam lágrimas de amor e saudade.

Nadinho da Teresa cresceu, estudou, virou um profissional respeitado, assumiu responsabilidades profissionais grandes, casou-se com Elisa, filha de vizinhos bondespachenses, teve dois filhos lindos. Repetiu a experiência do pai e foi por duas vezes vice-prefeito de Bom Despacho. Mas, assim como o pai, não era político, mas um benfeitor. Antônio entrava pra Prefeitura rico e saía pobre. Ronaldo entrava rico e saía pobre. O lema de Antônio e de Ronaldo era “Serviam” – “eu servirei”.

 Tereza e seu banquinho

Do pai, o filho herdou a postura, o respeito pelo próximo, o valor do trabalho digno e a fidelidade aos próprios princípios. No filho, era possível reconhecer o reflexo daquele mesmo caráter nobre, aquela mesma ética que não se dobra às facilidades, aquele mesmo compromisso com a verdade.

A honradez do pai viveu no filho — não por acaso, mas por presença, por convivência, por amor. Porque o exemplo arrasta. E esse exemplo fez morada no coração de quem veio depois, perpetuando uma herança que o tempo não apaga.

E assim viveram e assim morreram. Servindo ao próximo, ajudando quem precisasse. Duas almas generosas que viveram para ajudar, para fazer deste mundo um lugar mais nobre e honrado. Deixaram suas marcas de honradez, trabalho e serviço por onde passaram. Deixaram um mundo melhor.

Antônio Leite de Olivera. Ronaldo Gontijo de Oliveira

Tal pai, tal filho.

Bom Despacho, 4 de agosto de 2025

Angelita

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